Bolsonaro flerta com golpe militar
Seja pelo ritmo frenético de notícias que absorvemos em um único dia ao assistir ao noticiário brasileiro, seja por outras demandas, como a crise política e os reflexos da pandemia de COVID-19 no Brasil e no mundo, podemos dizer que passou despercebida uma das mais enfáticas declarações do presidente Jair Bolsonaro em mais um de seus inúmeros ataques à democracia. No último dia 18, Bolsonaro disse, e o fez sem o menor pudor: “são as Forças Armadas que decidem se um povo vai viver numa democracia, ou numa ditadura”.
Pela imprensa, evidentemente a fala gerou críticas e editoriais raivosos. Nada que não fosse esquecido logo na página seguinte destes mesmos jornais, dada a gravidade dos recentes acontecimentos em Manaus, ou mesmo em razão de uma nova tragédia pelo mundo. Que Bolsonaro se vale das chamadas “cortinas de fumaça” para desviar o foco de seu despreparo para o seu desprezo pelas entidades republicanas, até aí não há nada de novo. Algum crítico ainda porventura poderia vir a dizer, como quem relativiza o crime, como quem banaliza o mal: “isso são apenas as figuras de linguagem do presidente”.
É esse o mal da geração hard news: quanto mais consumimos notícias, menos prestamos atenção ao que de fato acontece. E não há razões para culpar a imprensa por passividade neste caso, ou mesmo ausência de críticas contundentes, se num dia o presidente faz uma afirmação desta gravidade, e no outro decide que Manaus passará a usar cloroquina contra a COVID-19, apesar da falta de indicação de autoridades médicas, ou mesmo, de um dia para o outro, se morrerão todos os doentes nos hospitais por falta de oxigênio. O fato é que a fala sobre militares e democracia, sem dúvida, merecia um debate mais amplo. Merecia mais atenção da PGR, do Congresso, do Senado, e principalmente do STF.
Não se pode deixar à mercê do tempo, que um dia, espera-se, apagará o bolsonarismo da história, toda responsabilidade pela frágil democracia brasileira. Mas há, em meio à COVID-19 e a ausência de possibilidade das ruas serem tomadas por uma multidão em fúria contra esses ataques à democracia, uma letargia no Brasil, sobretudo com relação ao bolsonarismo. Parece que nos permitimos esses ataques. Parece que esperamos que um dia ele vá embora, como assim aconteceu com Donald Trump.
É importante prestarmos atenção, neste sentido, que Trump não foi simplesmente embora. Ele foi vencido por um projeto de poder do partido Democrata, que envolveu a escolha de um Joe Biden, figura conservadora e conhecida na política norte-americana, e também de Kamala Harris, primeira mulher negra – declaradamente feminista e social democrata – a assumir a vice-presidência do país. E nem por isso podemos dizer que foi fácil. Trump levou dezenas de milhões de votos, e se não fosse pela invasão ao Capitólio no último dia 6 – a qual comandou pelo Twitter-, poderia ter dificultado bastante a posse de Biden, uma vez que republicanos o apoiavam em suas alegações de que a eleição teria sido fraudada.
Em verdade, foi este ato fascista e covarde o tiro derradeiro que pôs fim ao seu mandato. Prova cabal são os discursos de Trump, no dia 6 de janeiro inflamáveis, e depois disso, já com o devido receio de quem ainda vai enfrentar o peso da justiça norte-americana por um crime considerado gravíssimo em território estadunidense. Seria um erro afirmar que Trump tentou tomar o Capitólio, e assim, por conseguinte, a democracia dos EUA, no fatídico último dia 6. Foi vista, ali, a força de seus apoiadores, o fascismo por trás das bandeiras dos supremacistas brancos, o anti-semitismo, o negacionismo em sua mais pura essência. Mas o golpe, esse a quem estamos acostumados, esse a quem vemos e reconhecemos à distância, esse, sabemos, passou longe.
De qualquer sorte, no dia seguinte Bolsonaro falou na porta do palácio da Alvorada. Questionou o sistema eleitoral brasileiro, falou mal a imprensa, e por fim, já sentindo-se bastante a vontade, disse: “Aqui no Brasil, se tivermos o voto eletrônico em 2022, vai ser a mesma coisa. A fraude existe. Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”. Foram ameaças claras, vulgares e antidemocráticas, e feitas ali, à frente de todos, ao alcance espontâneo das redes sociais, que em frenesi repercutiram as falas do presidente, uns condenando, outros sentindo ao coração o mais íntimo chamado à ditadura.
Voltando aos EUA, ao inesquecível 6 de janeiro de 2020, às figuras caricatas surreais e fortemente armadas que as câmeras de televisão mostravam, é impossível não pensarmos no Brasil, e também nas declarações de nosso presidente. Se ali, nos EUA, o golpe passou longe, haja vista que militar nenhum estava ali entre os invasores, e o próprio Congresso, mesmo acuado, mesmo violentado, juntou suas forças e entrou madrugada adentro para legitimar um pleito que, se havia sido vítima de fraude ou não, isso já não era mais importante, é inevitável nos perguntarmos se no Brasil aconteceria o mesmo, se nossa democracia teria essa força, de que lado estariam os nossos militares, e se do nosso, da democracia, qual a razão para tamanho silêncio até agora?
Com efeito, ameaça feita, Bolsonaro é, queira ou não queira, o chefe supremo das forças armadas brasileiras. Ao falar que quem decide se viveremos em democracias ou ditaduras é o Exército, referia-se a si mesmo, como quem debocha do cargo que ocupa, como se a democracia não lhe bastasse. Do episódio, dois fatos vieram à tona: a normalidade das instituições republicanas foi mais um vez ameaçada, não se pode permitir que o chefe do executivo faça da presidência da República um jardim de infância; e a segunda, a mais evidente, é que a popularidade de Bolsonaro derrete gradualmente, e por isso é latente o seu medo em perder a eleição de 2022.
Por essa razão, os negacionistas saudosos da violência da ditadura militar de 64 estão à postos, à espera de uma ordem de Jair Bolsonaro. Os militares, e nisto, no caso do Brasil, lê-se as polícias militares, também estão lá, são o governo e se dizem pelo Brasil, seja lá qual for o real significado disso. As peças, no tabuleiro, foram postas. Ou a República age pelo impeachment, ou pagaremos para ver a mais alta aposta de Jair Bolsonaro.
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